Pobre Influencer

Publicado em 29/01/2021. Tempo de leitura: 4 minutos

Já passava de uma da manhã. O guri começou a abrir a porta do quarto com o pé direito, vagarosamente, suor pingando de sua testa gordurosa, a ponta da língua tocando a extremidade direita de sua boca aberta cheia de cáries, a mão treme devido a tamanha tensão. Faz quarenta e cinto minutos que o velho não emite qualquer tipo de barulho, e ele deveria ter saído para trabalhar umas duas horas atrás. O ranger alto da porta num som contínuo, enquanto a visão do quarto se revelando pouco a pouco, com um chiado constante de fundo. Após abrir a porta por completo, o guri foi presenteado com a imagem daquele velho obeso, com odor muito próximo ao de uma sala escura abandonada, cheia de mofo, cuja alma não visitara há algumas décadas, sentado na frente da TV Sony de 14 polegadas, sintonizada num canal fora de ar, pois todas as emissoras já tinham encerrado sua programação.

Observou incrédulo por dois minutos, braços caídos perpendicularmente ao corpo e boca aberta cheirando a cigarro ruim, a cena que tanto dizia desejar para seus fãs virtuais. Para ele e para seus cyberfriends, o velho era constantemente promovido ao posto de verme, cujo cérebro putrefato ganhava muito mais atenção que seus sonhos de um mundo melhor e mais justo para todo mundo, principalmente para as minorias.

Até a noite anterior o velho era vigia noturno de uma grande empresa de computadores. A partir desta seu corpo cedeu, não emite mais os batimentos descompassados de um coração cansado de ser constantemente massacrado com tanta junk food, tanto refrigerante, tanta porcaria ingerida de maneira descontrolada. Era como tentar manter o motor de um carro funcionando à base de mijo e vômito. A partir desta noite, o velho já “não está mais entre nós”, e a empresa vai precisar de um novo vigia.

O fato é que, agora, aquele pedaço de banha que corroborava com a origem do mal se esvaneceu perante os olhos do guri e, agora, ele, que nunca fizera nada de útil na vida, que passava o maior tempo possível reclamando em salas de chat virtuais, em sua sala de vídeos da internet, que ficava horas e mais horas digitando frases de ódio em seu diário virtual, como se fosse a pessoa mais pro-ativa do universo, terá que se juntar a quem tanto odeia. Agora ele terá que servir a uma grande e gananciosa corporação pois, olha só que hipocrisia, não existe mais o velho para bancar sua internet, sua luz, sua alimentação, e suas camisas de bandas de rock anarquistas.

Agora ele vai, finalmente, entender que não deveria ter feito a “brincadeira” de trocar o medicamento da pressão alta do velho em busca de mais popularidade virtual. E essa não fora a primeira, nem a segunda, “brincadeira” que ele fez com o velho, aquele senhor de sessenta e poucos anos, que acolhera o guri num momento em que este perambulava pelas ruas com fome, sem destino, sem família, e que lhe dera um teto para morar, exigindo em troca apenas companhia para jantar e para ver TV. Aguentava de tudo, de tudo mesmo, pois era a única maneira de não se sentir sozinho novamente. O guri era o único “filho” do velho que, de alguma maneira, ainda o fazia sentir algo. Os barulhos da casa faziam o velho sentir que ainda morava com a família.

Agora sim aquela casa irá para seus reais herdeiros, aqueles que têm o sangue do velho rolando em suas veias, mas que não se importam com ele há muito tempo, e que a venderão imediatamente para gastar todo o dinheiro com supérfluos. Agora sim o guri vai abrir os olhos e perceber que, na real, ele era o fantoche. Vai entender que ele é quem era manipulado por aqueles que enviavam aplausos virtuais, figurinhas animadas representando elogios, que o norteavam cada vez mais para o fundo, para o caminho sem volta da estupidez humana, que o desafiavam a fazer cada vez coisas mais baixas, com o solene objetivo de viralizar ainda mais. Ele, que ajudava a bancar o mundo de sonhos, que todo troll de internet faz, vai ter que arranjar um emprego, ou voltar pras ruas.

Agora sim… fodeu… guri.