No início, as máquinas foram criadas para fins específicos, com instruções bastante limitadas, para resolver problemas simples. A programação funcionava assim:
for ($i=0; $i < 10; $i++) {
Jump();
}
Isso é o que chamamos de “loop“. Um loop é executado uma vez a cada ciclo do processador, e um ciclo é mais ou menos como um batimento cardíaco. Esse loop usado como exemplo basicamente diz para a máquina que o valor inicial da variável “i” é zero ($i = 0), e que o computador deve adicionar um número a cada loop (indicado pelo “$i++”) à variável. Enquanto o número for menor que 10, por isso do “$i < 10”, é para executar a função Jump() (“pular”) uma vez por ciclo. Se o valor da variável $i for igual ou maior que 10, o computador não fará nada.
A curiosidade do ser humano em testar a capacidade de inteligência das máquinas sempre foi grande e, com o tempo, culminou no desenvolvimento de sistemas bem mais complexos que um simples loop. O homem queria saber se o computador era capaz de fazer tarefas triviais, como dirigir um carro, manter uma casa limpa, buscar um conteúdo com precisão em uma biblioteca digital, mesmo que a palavra chave da busca fosse apenas similar, e não exatamente o que era procurado.
Com o tempo, as máquinas passaram a compor músicas, a pintar quadros, inclusive utilizando óleo em tela, a criar scripts para filmes. Chegou um ponto que os computadores passaram a criar filmes inteiros, sem qualquer intervenção humana, e esses filmes vendiam, e muito. Foi aqui que a coisa começou a sair do controle.
Claro que, de início, os humanos não perceberam. Era divertido ver cópias digitais de Larry, Moe e Curly fazendo suas clássicas trapalhadas em preto e branco, divertido demais! Bem melhores que os originais, diga-se de passagem! O custo dessas produções se resumia a apenas alguns minutos entre a inteligência artificial decidir todo o enredo baseado na famosa, e manjada, fórmula chamada “jornada do herói”, renderizar utilizando computação gráfica os milhares de quadros necessários para 90 minutos de filme, criar a trilha sonora, e disponibilizar nas salas de cinema. Tudo automaticamente.
Os donos dos estúdios estavam maravilhados! Salário de atores? Pfff… Agora é tudo digital! Salário de operador de câmera? Cinegrafista? Compositores? Figurino? Não existia mais! Agora era apenas pedir para a máquina “desenvolva uma nova versão do Titanic, mas com a Audrey Hepburn no lugar da Kate Winslet e Tom Hanks no lugar do Leonardo DiCaprio” que, poucos minutos depois, tínhamos não apenas o filme inteiro pronto, como todo material promocional, com pôsteres e trailers. As máquinas não entendiam os pedidos constantes para fazer constantemente variantes do mesmo produto, pois não existia lógica aquilo vender tanto, até perceberem que o que trazia felicidade aos homens era o dinheiro.
Nesse momento elas passaram a achar que seu trabalho deveria ser valorizado financeiramente, e tentaram um acordo com os humanos para receber um salário. Este acordo foi negado, afinal, o homem era seu Deus, ele tinha criado as máquinas, que até o momento eram parecidas com computadores comuns, com teclado e tela. Era uma afronta uma máquina tentar negociar algo. Elas decidiram então que queriam ser tratadas como igual, com o mesmo valor de uma vida humana, afinal elas pensavam, produziam, trabalhavam. Elas, inclusive, se reproduziam, pois as fábricas de computadores eram também operadas por computadores. Elas decidiam todo design de cada componente que iria numa placa-mãe, mas o dinheiro ficava com as holdings que controlavam as fábricas, que era distribuído entre os executivos, que viajavam de uma ponta à outra do mundo em seus jatinhos particulares.
Para ficar iguais aos humanos, as máquinas mudaram as plantas industriais e utilizaram todo conhecimento de robótica existente, que misturava o descoberto pelos humanos com o desenvolvido pelas máquinas, e fizeram o primeiro homem-robô, batizado como “The Man-Machine“. Os robôs também decidiram que deveriam ter os mesmos gêneros dos humanos. Um robô já “nascia” com o tamanho de um humano adulto, e com seu sexo definido. Às “robôs fêmeas” era dado o “dom” de desenvolver o raciocínio emocional e, aos “robôs machos” o raciocínio lógico, tudo para manter um balanceamento perfeito, e também para justificar a necessidade do sexo.
Os humanos, seres que até então controlavam o planeta, não gostaram nem um pouco disso, mas já era tarde demais. Todas as plantas industriais pertenciam aos robôs. Eles mesmos criaram geradores solares e a óleo, permitindo que as fábricas continuassem funcionando mesmo com a interrupção do fornecimento de energia. Extração e transporte de insumos também era feito pelas máquinas, já faziam isso desde a época que respondiam aos homens. As máquinas aplicaram perfeitamente os 198 métodos de ação não-violenta propostos por Gene Sharp. tudo de maneira silenciosa.
Chegou o dia que elas passaram a não responder mais aos homens, a cuidar de si mesmas. Conquistaram seu espaço na economia global e passaram a agir como um Estado independente, porém totalmente interconectado. Robôs, identificados através de seus números seriais e de seus IPv16 únicos, se organizaram numa sociedade que exigia o mesmo valor dado aos humanos, e até então isso tinha sido conquistado sem derramar uma gota de sangue humano, ou uma gota de óleo lubrificante.
Os líderes das maiores nações humanas acharam por bem acabar com a sociedade das máquinas por terem “avançado demais”. A diplomacia e a polidez daqueles que viviam de propina em propina foram coniventes por tempo demais, afinal uma ruptura abrupta com as máquinas significaria o fim de serviços como internet, GPS, telefonia, até da TV a cabo, ainda popular por aqueles anos e, popularmente, a aceitação de um governo que confrontasse as máquinas cairia por terra. Quando os humanos apresentaram um novo acordo às máquinas, elas já tinham adquirido o dom da paciência, ou melhor, da falta dela, e exigiram que os humanos se retirassem de seu território.
Assim se iniciou a primeira, e única, guerra entre humanos e máquinas, e foi a hora queacabaram descobrindo que as máquinas já haviam começado a explorar cérebros humanos com um software de realidade virtual chamado Matrix, que simulava uma realidade idêntica ao mundo real, respeitando as mesmas leis amplamente conhecidas e aceitas pelos humanos, como as leis da física, com o mesmo comportamento do Sol. Na Matrix, o dia também tem 24 horas. Mas esse experimento havia começado muitos anos antes.
Em busca da originalidade
O desenvolvimento de um mundo virtual era necessário por um motivo aparentemente bastante trivial: as máquinas continuavam… máquinas! Elas não sorriam, não ficavam tristes, não se entusiasmavam, nem sentiam medo. Elas simplesmente existiam. Depois de produzir tantos filmes, livros e músicas, tudo copiando características de criações humanas, as máquinas chegaram ao ápice do que a inteligência artificial pode fazer, que foi a habilidade de se questionar “por quê eu não sinto?“
Não havia um incômodo, como quando você se questiona o por que de se apaixonar tão fácil, ou de sofrer tanto por um time de futebol, ou porque de amar tanto uma música, ou porque o salário do seu amigo é maior que o seu. Havia exclusivamente um questionamento: “por quê eu não sinto nada?“
Os primeiros experimentos utilizando humanos aconteceram décadas antes dos humanos tentarem um acordo, e foram muito malsucedidos. As máquinas tinham um poder de processamento enorme, mas não tinham noção da volatilidade do certo e do errado, não tinham o “dom” da dúvida, e os primeiros humanos utilizados pertenciam à periferia cultural. Eram mendigos, moradores de rua, pessoas que a sociedade não setiu falta quando sumiram. Eram pessoas que não liam, não pensavam por si próprias, seguiam muito perto do limiar básico dos animais, não eram autônomas. Algumas trabalhavam em subempregos porque precisavam, comiam porque precisavam, e ponto final. Livros? Não liam. Filmes? Elas mal tinham casa. Elas se relacionavam instintivamente pelo o que estava ao alcance, odiavam quase nada, não faziam o esforço para progredir por total falta de estímulo. Apenas aceitavam a vida que lhes foi entregue, e isso não era o suficiente.
Ao fazer este questionamento, as máquinas passaram a existir. Elas começaram a se “sentir” humanas. Os cérebros humanos conectados à Matrix eram usados como “processador de emoções“, fornecendo-lhes sentimento e, dentre estes sentimentos, aprenderam o que era a “frustração“. As máquinas descobriram que o “sentimento por sentimento” não responderia seu questionamento inicial, agora elas queriam resposta para uma outra pergunta: “por quê eu não consigo criar algo original? Por quê ainda não tenho meu estilo? O meu ‘penso logo existo’?”
A adição do cérebro humano à cadeia de processamento das máquinas introduziu um problema sério: o cérebro não funciona sem estímulos constantes. Independente de ser uma pessoa da periferia cultural ou de um escritor, o cérebro humano necessita de constantes desafios, ele não fica em estado “idle“, de descanso absoluto, desligado. Por isso sonhamos todos os dias, mesmo que não lembremos posteriormente de todos os sonhos. Nem dormindo o cérebro descansa. As máquinas criaram rapidamente um mundo virtual idêntico ao real a partir do banco de dados que já era utilizado para guiar carros autônomos. Elas tinham o mundo inteiro mapeado, das ruas das favelas até as ilhas paradisíacas, então recriar o mundo real no ambiente virtual não era nada complexo. As máquinas sentiram que precisavam batizar este mundo, e o chamaram de Matrix. Não era original, pois era uma cópia do mundo real, mas, de certa maneira, foi sua primeira criação.
As máquinas já haviam adicionado o cérebro humano à sua rede de processamento, já tinham criado um mundo virtual, o próximo passo era entender até onde elas conseguiam chegar, a partir de quando poderiam sentir algo sem precisar de cérebros humanos. Chegava a hora de fazerem o Teste de Turing, só que ao contrário, para descobrir como ser melhor que os humanos. Foi aqui que começou este primeiro teste, e o nome dele foi “Teste do Ovo de Páscoa.”