Brasil 2022

Publicado em 26/03/2021. Tempo de leitura: 7 minutos

A gente morava numa casa grande, bem grande, do ponto de ter banheiros inacabados e ninguém dar bola. A vista era linda, não era bem de frente para o mar, mas dava pra ver o mar e os coqueiros. Mas, não interessa se você mora numa casa gigante ou num apartamento minúsculo de 1 quarto, quando a insanidade coletiva chega, ela chega para todo mundo.

Lembro que era tardinha, o Sol estava se pondo, e eu estava num lugar da casa que dava pra ver perfeitamente. Falei com Helena, chamei ela pra ver o pôr do Sol comigo, e nosso filho estava na sala brincando. Ele tinha pouco mais de 1 ano, já dava os primeiros passos. Ela chegou depois do primeiro som alto, parecia um jato passando bem baixo. Olhei pra cima e acho que consegui ver ele. Quando Helena chegou do meu lado e olhamos para o horizonte, vimos que o jato tinha dado uma volta e estava vindo em direção à nossa casa. O fundo alaranjado com a bola amarela, aquele aparelho de guerra vindo em nossa direção, soltando uma bola no ar, que segundos depois descobrimos ser um míssil.

Como o teto de casa tinha partes de vidro tanto na frente quanto atrás, acompanhamos aquele objeto metálico cilíndrico preto. Primeiro meu medo era que atingisse a nossa casa, que fosse direcionado, sei lá por qual motivo, pro nosso lar. Ele veio na nossa direção, passou raspando o telhado, e acertou a fábrica de biscoitos que ficava na rua de trás. Não conseguimos ver, mas ouvimos as explosões, e ali foi onde tudo começou.

O que realmente estava acontecendo é que aquele já era o terceiro ano de uma pandemia global, e meu país ainda estava brincando de contar mortos. Os outros países desistiram de negociar e abriram fogo contra fazendas, fábricas de comida, supermercados, padarias. A estratégia era acabar com todo estoque de comida para que morressemos de fome, acabando assim com o foco da pandemia global. Todo mundo tinha resolvido isso, menos a gente, por causa do nosso presidente genocida e seus mais de 50% de eleitores apoiadores.

De repente um barulho alto, desci correndo e vi que arrombaram a porta da minha casa. Como a casa era muito grande, ela tinha umas três portas de entrada, sendo uma delas ligada à saída traseira, que era o acesso à garagem, ficava difícil conter o acesso das pessoas, ainda mais que estávamos só nós três em casa. Helena morria de medo do vírus, não saía de casa pra nada. Tínhamos a sorte de uma casa grande cheia de coisas para fazer. Mas, ao mesmo tempo, estávamos extremamente vulneráveis.

Em questão de segundos se formou uma festa dentro de casa. Quando falo “festa”, é festa mesmo. Pessoas comemorando, bebendo, ninguém roubando nada nem depredando a casa. Em questão de segundos não encontrei mais nem Helena, nem nosso bebê. Ela tinha entrado em pânico, saído correndo para que nenhuma daquelas pessoas nos passasse o vírus. Lembro de ter visto uma máscara perto e colocado, mas uma das pessoas que invadiu minha casa era minha “amiga”. Bruno chegou perto de mim, me abraçou como se fosse carnaval, e meteu a mão na minha máscara. Comecei a empurrar ele segurando meu rosto, para que não ficasse exposto, enquanto ele falava “deixa disso! Isso é manipulação! Tu tá sendo enganado pela mídia!” Fiquei com muita raiva, empurrei ele com força, e a máscara foi junto. Saí correndo e deixei ele falando sozinho enquanto abria uma latinha de cerveja. Subi as escadas para o segundo nível e vi nossa mesa de jantar cheia de gente. Tínhamos duas poltronas próximas, feitas de madeira escura com almofadas de tecido bege clarinho, as luminárias eram baixas, e uma moça de vestido azul de cetim dançando. Neste ponto eu não estava entendendo mais nada, só conseguia lembrar da insanidade do filme Mãe. “Que porra está acontecendo?”, pensei angustiado, tentando achar Helena e nosso filho.

Desci alguns lances de escada, cheguei numa das partes inacabadas, tinha um banheiro que nem lembrava mais que existia, e esse banheiro dava a um cômodo pequeno, onde tínhamos alguns livros, e tinha gente até ali, com aparelhos de som tocando música muito alto. De repente ela me viu e veio correndo na minha direção, combinamos de sair pela porta garagem, e fomos naquela direção. Nosso filho, como nunca tinha visto tanta gente assim, estava bastante curioso. Nem percebia o desespero dos pais. Talvez, na cabeça dele, era como os parques de diversão que a gente via no You Tube. A TV era a única maneira de fugirmos de casa.

Saímos, Helena correu e escalou uma árvore para chegar no primeiro andar de um prédio abandonado. Ela subiu, alcancei nosso filho e tive dificuldades em subir também, pois meus braços não tinham força por conta da força que tive que fazer pra que Bruno me soltasse. Demorei um pouco, mas subi. A área que estávamos era apenas uma fachada, e no apartamento do lado dava pra ver pessoas bebendo, rindo, se divertindo. Eu via tudo aquilo e não conseguia entender nada, até que Helena começou a me explicar:

— Eles estão vivendo o último momento das suas vidas — ela disse
— Como assim? — perguntei sem mesmo saber como reagir à explicação dela
— Todos os outros países resolveram eliminar a gente. Acabamos de reeleger um presidente genocida, somos o foco de uma epidemia global e, apesar de fronteiras e aeroportos fechados, ainda conseguimos dar nosso jeitinho de ir pra outros países. Finalmente chegaram à conclusão que somos uma praga! — ela completou
— Por quê não se cuidam? — perguntei, completamente desnorteado
— Porque ficar em casa não rende like nem comentário pro Instagram. As pessoas querem morrer na festa, querem postar que estão na festa. Por isso que todo mundo está na rua. O objetivo é mostrar que morremos felizes, morremos melhor que qualquer um. Com sorte, viraremos um novo meme.
— As pessoas vão morrer por causa do Insta? E… — tentei completar, mas passou um carro com som alto, que parou pouco depois do prédio que estávamos, e a gente não conseguia mais ouvir o que o outro falava.

Ficamos olhando ao redor, ilhados. Pensei em tentar entrar no prédio escalando um aparelho de ar-condicionado, mas vi que o apartamento ao qual ele dava acesso já estava tomado de pessoas. Nessa hora nosso filho tentou usar a árvore como tobogã pra descer, ele estava se divertindo. Helena agarrou ele rápido, no susto.

Pessoas dançavam no meio da rua escura, refletida pelo azul do neon de um bar do outro lado da rua, que estava aberto e cheio de gentes. Permanecemos incrédulos, mudos. Me agarrei ao pequeno tentando manter a calma. Por dentro eu estava em frangalhos, por fora tinha que mostrar serenidade.

Entramos a noite ali, o Sol começou a nascer, dava pra ver as fumaças no horizonte. Quando olhei ao redor, Helena e nosso filho tinham sumido. De repente me dei conta de que havia apagado, pois não lembrava de nada após o abraço que dei no meu filho. Entrei em pânico e pulei de onde estava. Torci o pé na queda, doeu muito, mas a dor não era forte o suficiente para me parar.

Nunca encontrei eles. Nunca saberei o que realmente aconteceu.